CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

Ainda é pandemia. Após imunizações e planejamentos diversos, retomamos o encontro de
corpos saudosos da troca de olhares e sorrisos, ainda que cobertos. A Faculdade de
Saúde Pública não é a mesma de dois anos atrás, o prédio permanece o mesmo, talvez;
porém, suas estruturas causam espanto, estranhamento. Por sua grandeza e pelo vazio,
que vamos aos poucos preenchendo com nossos corpos cheios de desejo de nós. Território
que agora pode promover conexões para além das telas dos olhos humanos (e não
humanos também, claro). Depois de nos re-conhecermos na presença, fizemos uma rodada
de apresentação para deixar claro: estamos vives, seguimos juntes e somos mais. A sala de
aula ganhou o cheiro característico de todas as reuniões do Coletive, desde seu
nascimento: café fresco. Mantendo as distâncias e buscando as janelas, comemos
enquanto pensamos, sorrimos, anotamos, nos conectamos virtualmente com as pessoas
queridas que ainda estão distantes geograficamente (Flavia, Denise, Tamires, Tassiana,
Mafê presentes).

colagem Cpas
Arte Colagem Feita Pela Maria Clara

A programação seguiu em uma manhã inundada de trajetórias de pesquisa. Conhecemos
os caminhos etnográficos percorridos por Dulce e suas redes de acolhimento e coletividade,
em seu processo de tornar viva sua dissertação de mestrado recém parida e defendida
(parabéns mestra!), nomeada: “De documentos, cactos e vírus: violência sexual, mulheres
indígenas e Estado em São Gabriel da Cachoeira.” Percorremos sua tessitura de redes e
alianças com mulheres indígenas e instituições onde imagens fotográficas congeladas
ganham movimento, ondas, Rio Negro. Seguimos viagem nos deliciando com a reflexão e a
narrativa de Michel sobre as formas de cuidado de pessoas trans, travestis e enebés em
São Paulo. Perspectivas do cuidar e do cuidado não necessariamente como algo “bom per
se”, longe e apesar dos espaços institucionalizados de saúde. Foi um presente sobre as
possibilidades de contar histórias de pessoas e de cidades inteiras, com o compromisso de
registra-las e mantê-las vivas e celebradas. Sua dissertação, intitulada: “Criar um mundo
pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida
possível” será defendida no dia 30 de março de 2022.
Nos aproximamos do trabalho de Isabela Umbuzeiro, doutora em artes pela Universidade
de São Paulo. Na sua tese de doutorado intitulada “Criação à deriva: políticas do cuidado
em coletivos incomuns”, a autora discute os desafios para instauração dos direitos sociais
no Brasil após a Constituição de 1988 refletindo sobre as formas como se deram as
políticas culturais e de saúde no período, os efeitos do neoliberalismo nos processos de
subjetivação e a produção do comum
Depois do almoço, a jornada seguiu brilhante. Luh abriu os trabalhos falando sobre sua
pesquisa que pauta campo científico-acadêmico, saúde e transgeneridade, dividindo suas
angústias sobre a inserção no campo e os desafios da etnografia, a escrita que nasce do
cotidiano, das lembranças e experiências. A “escrevivência” de Conceição Evaristo. Em
seguida, Maria Clara divide encruzilhadas iluminadas na pós-qualificação de seu projeto de
doutorado chamado ”Um estudo etnográfico sobre mulheres lésbicas e práticas corporais:
poder, controlar, resistir e criar”. Com uma apresentação impecável e cheia das colagens
que estão compondo sua pesquisa, Maria Clara traz sua inquietude sobre o fazer
etnográfico, o aprendizado transdisciplinar e a escuta necessária para avançar.
Mafê nos coloca por dentro das periferias com sua pesquisa sobre redes sociotécnicas de
cuidado e as práticas do fazer viver. Nos encanta com seu processo de encontrar-se na
escuta do podcast “Conversas de Portão”, que existe e afrofutura em contexto de grandes
anseios pelo diálogo, pelo cruzar de histórias. O primeiro dia do seminário termina com
Kaori contando sobre potências e tretas de sua pesquisa intitulada ”Natureza e
Cosmopolítica: um estudo teórico sobre Saúde Coletiva desde o fim-do-mundo” que olha
para a natureza e a saúde pública desde o fim do mundo, questionando definições e
processos de construção de narrativas sobre a natureza, a humanidade, o campo da saúde
e outros.


Terminamos o primeiro dia desse seminário de pesquisa com a sensação pulsante de que
parcerias verdadeiras são coisa rara; relações igualitárias e simbióticas onde um alimenta o
outro sem depender, sem diminuir e se alegrando com o crescimento alheio são o trigo em
meio a um mar imenso de joio, e mesmo dentro delas não é simples fazer todos os dias a
escolha de ficar, permanecer, seguir caminhando de mãos dadas. O mundo, o nosso
mundo, esse que aí está e nos cabe apesar de nossos veementes protestos, nos empurra à
desilusão, ao desencanto, à descrença. Não tem sido fácil estar viva e, em meio a tanta
desesperança, escolher seguir produzindo, mantendo a criatividade e o tesão na pesquisa é
tarefa dura, exigente, mas com ternura. Era tanta ternura que o momento firmou-se eterno,
num gozo calmo, prolongado. Mais distenso que um orgasmo e tão intenso quanto ele.
Éramos mais de um, éramos um grupo, mas não homogÊneo e nem monocromo. Ali
éramos, como somos, sozinhes, quero dizer, cada um/a a/o sua/seu eu mesma/o. Eu por
inteira. É possível fazer juntes, em um ambiente onde não é necessário se esticar nem se
espremer, somos do nosso próprio tamanho e saímos maiores do que entramos. Agradeço
aos nossos (des)orientadores José Miguel e Cristiane Cabral, por inspirarem a nossa
potência para permanecermos construindo pontes, questionando verdades absolutas e
nutrindo a nossa existência coletiva.
Ansiosa pelo próximo (re)encontro.
Danielle Ichikura (e todos os olhos gentis e atentos que acariciaram essas linhas)
Graduanda em Saúde Pública na FSP/USP