CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

Se não está no papel…. nunca existiu

Com a nova pandemia, pode-se analisar a falta de infraestrutura que nos acerca. Geni, uma técnica de enfermagem, relata os problemas enfrentados no seu local de trabalho, o que causa um cenário caótico: muitas pessoas morrendo (causando uma superlotação no necrotério) e o silenciamento pelas mortes de COVID-19, onde há grande escassez e empecilhos para os testes serem feitos. Texto de Joyce de Melo Alves.

Acesso em <Can Court Orders be Changed? – Fine & Associates (torontodivorcelaw.com)> no dia 03/12/2021

Em tempo de Covid-19 e isolamento social, a comunicação virtual aumentou de forma exponencial. Inúmeros grupos de Whatsapp começaram a se formar com a finalidade de dirimir a solidão que muitos brasileiros estão sofrendo. No meu caso, a fuga para os grupos de Whatsapp visava a amenizar a sensação de que sozinha estou. Nesse momento virtual, não queria saber de pandemia, de decretos governamentais, de coletivas de imprensa, medos, angústias, desavenças políticas ou qualquer outra forma de realidade que me tirasse do retraimento físico, psicológico e social. Porém, nessa fuga, me deparei com uma narrativa extremamente séria, devastadora e, ouso falar, repugnante.

Geni, nome fictício adotado para não expor a identidade da denunciante, pedia ajuda por meio de um grupo de Whatsapp de amigas próximas para ter condições dignas em seu trabalho, mas, se isso não fosse possível, ao menos que os mortos fossem tratados com respeito e dignidade. Isso mesmo, você leu certo, MORTOS!

Geni é técnica de enfermagem e trabalha há mais de dez anos em um hospital público estadual, localizado na Zona Norte da capital paulista. Extremamente abalada, relatou seu cansaço por levar corpos ao necrotério, já superlotado, o que aumentava sua angústia por não ter como acomodá-los. Eram corpos de pacientes que haviam dado entrada no hospital com problemas respiratórios, mortos entre 3 e 4 horas depois de iniciado o atendimento.

A preocupação de Geni, além da própria vulnerabilidade psicoemocional, provocada pela carga exaustiva de trabalho, era com o silenciamento dessas mortes. Estava ocorrendo sem qualquer forma de registro e, portanto, não incluídas nas estatísticas oficiais, impedindo a visualização da real situação da pandemia no Brasil, mais precisamente na cidade de São Paulo.

Hoje reconhecida como um gargalo, a subnotificação foi um desdobramento da falta de testes, logo que a transmissão do novo Coronavírus passou a ser comunitária, no início de março. Geni descreveu um cenário caótico e dramático: as pessoas eram entubadas e enviadas para a UTI com o diagnóstico de problemas respiratórios, ainda que todo o corpo médico e os demais profissionais da saúde soubessem que já estavam lidando com o Covid-19. Àquela altura, inclusive, muitos deles também infectados, não podiam colocar esses números nos sistemas de informação do órgão responsável pelo monitoramento da epidemia, porque não dispunham do teste que comprovava a doença.

O governo tentou uma solução para o problema: testes rápidos, que entregavam o “diagnóstico” entre 15 a 30 minutos. No entanto, é importante lembrar, esse teste tem limitações, comparado ao mais eficiente, o RT-PCR (reação em cadeia da polimerase em tempo real), que detecta o RNA do vírus em uma amostra de sangue ou secreção nasofaríngeo (coletado por uma espécie de cotonete pelo nariz ou pela boca, o chamado Swab), que pode ser realizado logo no início da infecção, antes mesmo do paciente apresentar os primeiros sintomas. Em situações normais, o resultado do RT-PCR sai em cerca de seis horas, mas, com o avanço da epidemia, a espera supera uma dezena de dias. Já os testes rápidos, apresentam duas formas de diagnosticar: (1) por meio de antígenos (Ag) presentes em amostras de secreção, que indicam a presença de anticorpos contra a infecção; e (2) IgG e IgM, teste realizado por sorologia da amostra de sangue total, soro e plasma, úteis para verificar a presença de anticorpos que o organismo produz quando entra em contato com um microrganismo invasor.[1]

Ambos os testes rápidos seriam uma forma de lançar luz ao cenário epidêmico e orientar o trabalho dos profissionais da saúde no combate ao Covid-19, e, consequentemente, de amenizar as angústias de Geni, que hoje são também de quase todos os brasileiros. Seria, mas não é, por um pequeno grande detalhe: o primeiro teste só possui eficácia se realizado cinco dias após a infecção; já o segundo, demanda oito dias, quando o corpo começa a produzir anticorpos após o período de incubação do vírus. Nesse sentido, se o teste é rápido em seu diagnóstico, é muito lento e ineficaz para aquele paciente que não quer, e muitas vezes não pode, esperar pelo tempo da ciência.

Bom, pode-se deduzir que o silenciamento de centenas de mortos infectados pelo Covid-19 está resolvido, ainda que o teste rápido não funcione para aqueles que não apresentam quaisquer sintomas da doença. E isso possibilitará que os números sejam computados caso o paciente venha a óbito, certo? Eu não contaria com isso, porque o cenário segue preocupante.

Além do quesito tempo, que impede que os testes sejam realizados antes da hora, aumentando a probabilidade de falsos negativos, o que compromete a qualidade dos dados. Países como a Espanha devolveram kits importados pela China por apresentarem uma sensibilidade de apenas 30% enquanto deveria apresentar 80%. [2]

Quinhentos mil kits importados da China chegaram ao Brasil em 30 de março e outros 4,5 milhões estão previstos para chegarem ao longo deste mês.[3] A estratégia do governo é priorizar a testagem de profissionais da linha de frente, como a Geni, por exemplo.

O agravamento da pandemia e os esforços públicos para controlar uma doença nova mudaram minha visão acerca do Covid-19. Se antes desejava o silenciamento alienante de determinados grupos de Whatsapp, agora anseio para que todos esses silêncios acabem. Quem deve ser achatada, espaçada e diminuída é a curva epidemiológica e não os profissionais da linha de frente, não o povo brasileiro preto e pobre.

Ah, esqueci de dizer, além de estudante sou advogada e, ao exercer a advocacia no direito cível, sempre orientei os clientes: é preciso prova, se não está no papel, é como se não tivesse acontecido. Nunca imaginei que essa premissa nos arrebataria de forma tão insolente como um soco na boca do estômago em meio a uma pandemia. Nunca imaginei que perceberia uma mão invisível que manipula e emudece. Nunca imaginei, mas hoje vivo e resisto, pois não consigo silenciar.

[1] https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46596-saude-amplia-testes-para-profissionais-de-saude-e-seguranca; acesso em 09.04.2020 [2] https://elpais.com/sociedad/2020-03-25/los-test-rapidos-de-coronavirus-comprados-en-china-no-funcionan.html; acesso 03.04.2020 [3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/covid-19-500-mil-kits-de-teste-rapido-chegam-ao-brasil; acesso 03.04.2020

Publicado originalmente dia 20/04/2021.

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