CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

Retrospectiva viral: de Brasília a São Gabriel da Cachoeira

FONTE: Acervo pessoal Dulce Morais.

Dulce Morais, publicado em 14 de junho de 2020.

Hoje faz quarenta dias que estou em quarentena. Achei isso engraçado e trágico, claro. Diferente da maioria dos meus amigos, estou confinada dentro de um apartamento há menos tempo. Eu ainda não tive nenhum desespero por estar em isolamento domiciliar, ainda não senti a necessidade do sol em meu corpo, ainda não me desesperei ao querer estar no meio de uma multidão, de abraçar e beijar alguém. Estou em um momento “privilegiado” em Brasília.

Quarenta dias atrás eu estava em um cenário completamente diferente. No olho do furacão do Covid-19 em Manaus, no centro da cidade, quatro dias em um quarto de hotel. A ideia era higienizar cada canto do quarto, o álcool em gel (duvidoso) era espalhado em cada móvel, às janelas abertas e o ventilador (barulhento) ligado o tempo todo. Era quase dez da noite e sentia um estresse enorme, um cansaço respiratório e uma incapacidade de racionalizar. A minha refeição do dia foi pedida por uma amiga que estava em São Paulo, pelo ifood, porque eu estava incapaz de fazer qualquer coisa.

Nos dias seguintes, eu olhava a torre da igreja de São Sebastião pela janela, a chuva fina caía do lado de fora do quarto. Silêncio quase que absoluto na cidade. A única coisa que me garantia que eu estava ali era o bater do sino da igreja em compasso ao de meu coração. Quatro longos dias.

Os dias anteriores a esta pequena estadia em Manaus foram repletos de muitas histórias. Não me delongarei a contá-las, a ideia é apenas exteriorizar algumas de minhas percepções e lembranças neste período de pandemia.

Estava em São Gabriel da Cachoeira no extremo norte do Amazonas, uma cidade pequena com uma população quase toda formada por pessoas indígenas. Cheguei a São Gabriel em fevereiro, momento em que o coronavírus era apenas um meme no meu ciclo social.

Lembro-me que, quase todos os dias, no café da manhã, minha amiga Piratapuya e eu brincávamos sobre o corona por poucos segundos. Lembro-me também de um dia, em março, que outra amiga moradora de São Gabriel me perguntou o que eu achava sobre a realização de uma oficina de comunicação que iria ocorrer no início de abril já que os casos de covid-19 estavam aumentando em São Paulo e Rio de Janeiro. Neste momento, disse que achava que era pouco provável acontecer alguma coisa, mas que prevenir é sempre melhor do que pagar pra ver. Então, para complementar minha resposta perguntei a um professor universitário o que ele achava, sua resposta foi de total descrença que o vírus chegaria a São Gabriel (opinião que se tornou diferente no dia seguinte).

A oficina foi cancelada. Minha amiga que havia feito a pergunta estava em Manaus e até as últimas três semanas não tinha conseguido retornar a São Gabriel, por diversos motivos. Um destes motivos foi o fechamento da cidade no mês de abril e os primeiros casos da doença em Manaus.

Cenário trágico. Nossos cafés da manhã se tornaram mais tristes e os poucos segundos de conversa sobre o corona se transformaram em longos minutos de tristeza e incompreensão. Uma manhã quando arrumávamos a cozinha depois do café, estava minha amiga Piratapuya e eu na pequena cozinha do ISA conversando. Ela, com seus olhos cerrados e sem o seu sorriso largo no rosto me disse que havia pensado em mim o tempo todo no dia anterior. Ela estava super preocupada comigo, por eu estar longe de casa, da minha família, dos meus amigos e dizia que não estava acreditando que aquilo poderia acontecer em São Gabriel, que ontem o vírus estava na China e agora estava ali. Ela dizia essas coisas em pé, de frente para mim, que estava sentada em um banquinho de madeira em frente à porta vermelha da cozinha. A porta fazia uma sombra sobre mim, e era um cantinho um pouco apertado e, ali, me encolhi e chorei profundamente ouvindo tudo o que ela me dizia.

Outro dia estava fazendo meu trabalho na Vigilância Epidemiológica da cidade e estava uma confusão tremenda no local. Aquelas profissionais lidavam com diversos problemas (dengue, malária, óbitos, entre outros) e agora tinham que se desdobrar para entenderem e se prepararem para a prevenção do coronavírus. Cheguei, sentei na mesa da coordenadora e comecei a analisar as declarações de óbitos quando, então, começo a ouvir sobre um suposto caso de covid-19 na cidade, olho o celular e vejo que o grupo de whatsapp do qual faço parte estava pipocando sobre a informação. Na pequena sala da vigilância uma circulação enorme de pessoas, e uma falação sem fim. Perguntei para uma das enfermeiras o que estava acontecendo, se realmente tinha casos confirmados na cidade e ela me disse que não tinha, era apenas um grande mal entendido. Na verdade, um morador de São Gabriel foi diagnosticado com covid-19 em Manaus, cidade na qual o homem contraiu a doença e estava residindo. Ao ser diagnosticado com o vírus, muito provavelmente ele disse que era de São Gabriel da Cachoeira ou então pegaram essa informação de seu cartão do SUS. Desta forma, as notícias que saíram e circularam foi de que havia um caso confirmado na cidade. Todos estavam nervosos com o excesso de trabalho, tentando lidar com essa informação e ainda resolver problemas internos que estavam acontecendo naquele dia na instituição.

Nossos corações ficaram aliviados quando saiu a nota da Vigilância Epidemiológica. Nenhum caso na cidade. A cada boletim que saía, criava-se um peso. Em todos eles, apareciam casos suspeitos para, no dia seguinte, serem descartados e assim foi por praticamente um mês.

Neste período, a cidade toda estava se preparando. A prefeitura já havia declarado o fechamento da cidade e a quarentena. As funcionárias da Vigilância estavam sempre correndo com seus trabalhos, fazendo reuniões – fui convidada para uma delas assim que cheguei na porta da instituição, nem tive tempo de entrar e fui direto para o carro da secretaria de saúde para discutirmos sobre o vírus. Neste dia, tive completa noção de que a situação da cidade era extremamente complicada por sua falta de materiais e insumos, de treinamento e estrutura. O trabalho redobrava, pois, a equipe deveria fazer o monitoramento de toda a população que chegava nos barcos vindos de Manaus (os legalizados e não legalizados), além das atividades corriqueiras que já realizavam.

A cidade estava bem vazia. Já nosso interior estava cheio de medo, preocupação, mas também de esperança. No café da manhã, tirávamos uns minutos para desabafar e dizer nossas impressões sobre o coronavírus.

A esperança estava presente em nós, mas isso não diminuía o trabalho que vinha sendo realizado na cidade para a prevenção e conscientização da população sobre a pandemia que estávamos vivendo. Cartilhas foram produzidas em português, tukano, baniwa, dâw e nheengatu; as mulheres do movimento indígena gravaram vídeos, realizaram campanhas, produziram máscaras, formaram o comitê de enfrentamento ao covid-19, pegaram microfones e saíram às ruas da cidade para dizer o quanto é importante ficar em casa.

No dia 18 de abril fomos gravar um vídeo para a campanha “Rio Negro, nós cuidamos!” Depois de tudo pronto eu passei mal e fui para o hospital da cidade com sintomas bem estranhos. Fiquei um dia de repouso. No dia seguinte, porém, passei mal novamente e mais uma vez fui ao hospital. Mais vinte quatro horas e fui trabalhar na minha antiga casa, mas não me sentia bem ali, algo estava estranho…eu não deveria estar circulando na cidade e então pensei que seria mais prudente eu fazer a utilização de máscara e iniciar uma quarentena de, ao menos, 14 dias. Enquanto pensava essas coisas, olho pela pequena janela com tela verde e vejo minha companheira de café da manhã passando…quase a chamei, mas não seria nada sensato depois de minha reflexão. Este foi o último dia que vi minha amiga Piratapuya. Dois dias depois, o primeiro caso de covid-19 é confirmado na cidade.

Confesso que pensei que tudo estava perdido. Eu estava vencida e fui embora de São Gabriel da Cachoeira. Esta situação não foi tão banal quanto apresento aqui, mas ainda não consigo formular algo melhor para dizer.

Ainda bem que uma batalha não é feita por uma única pessoa. Aquelas mulheres continuam trabalhando, se articulando e promovendo saúde de uma forma potente e inspiradora. Não produzem apenas máscaras, mas também sabão. Não cuidam apenas dos da família, mas de todos os parentes. Não estão atentas apenas às especificidades da cidade, mas às de todas as comunidades. Não ficam imobilizadas frente às dificuldades estruturais e políticas do hospital da cidade, exigem oxigênio! Uma noite dormem tristes pelas perdas, mas, na manhã seguinte, elas já estão de pé produzindo materiais, saúde, conhecimento e esperança.

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