CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

Fabulações científico-políticas em tempos de pandemia e seus demônios

Reinventando as estratégias do cuidado e da escrita

FONTE: Acervo pessoal Dulce Morais

Dulce Morais, publicado dia 22 de junho de 2020.

Hoje, acordo e o sol do cerrado brasiliense não está na minha janela. Parece uma manhã sombria, com ventos fortes e trovoadas distantes. Lembro-me do dia que saí da delegacia em São Gabriel da Cachoeira (o meu local de trabalho), em que eu vi a chuva caindo lá longe na imensidão do verde que estava à minha frente. Apressei os meus passos e retirei a minha sombrinha da mochila, será que daria tempo de chegar em casa antes da chuva chegar até mim? Tentava recordar de como estava o céu quando a minha amiga Piratapuya foi correndo e gritando “Doce! Doce!” na minha direção, para me perguntar se eu achava que iria chover naquele momento.

Parecia uma piada, ri profundamente e não fazia ideia se ia chover ou não. Quando cheguei no início da grande avenida Dabaru, os primeiros pingos de chuva caíram sobre o meu corpo e o cheiro prazeroso de terra molhada penetrava minhas narinas. Antes de chegar ao centro da cidade, a minha sombrinha não tinha condições de me proteger daquela chuva amazonense. Parei de baixo de uma lojinha de roupas e acessórios e decidi esperar a chuva passar.

Olhar aquele céu cinza imenso e as infinitas gotas de chuva que se transformavam num grande véu de água devido à velocidade e quantidade de gotas que caíam me fizeram perceber que eu iria esperar um bom tempo debaixo daquela lojinha. Então, resolvi ler um texto que fora enviado à comissão de arguição clandestina do Blog Covid-19: fabulações científico-políticas em tempos de pandemia e seus demônios.

Esse blog, para o qual eu escrevo, foi pensado por meu orientador e pesquisadores do Coletivo de Pesquisa em Antropologia e Saúde (CPas-1) e pelo nosso querido amigo que realiza estágio no departamento da Universidade. A ideia é que as pessoas de todos os núcleos da sociedade pudessem compartilhar de forma escrita e/ou gráfica experiências sobre o covid-19. A arguição dos textos seria realizada por um integrante do grupo de pesquisa Cpas-1, tendo uma rotatividade semanal do arguidor. Acontece que membros deste grupo de pesquisa se organizaram para discutir juntos cada texto enviado ao blog, enriquecendo os nossos conhecimentos e desenvolvendo técnicas de arguição em conjunto.

Então, enquanto a chuva caía comecei a ler o texto “Tezão na Pandemia” que nos apresenta informações sobre o aumento do consumo de pornografia no período de pandemia, o que nos proporcionou discussões diversas sobre a importância do sexo para a saúde física e mental, e a organização do trabalho de profissionais do sexo nesse período de isolamento social.

Também me recordo de uma manhã ensolarada, com um calor equatoriano que me lembrava “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Eu caminhava com o destino de chegar na delegacia no mesmo momento que discutíamos o belo texto “Quando nascer e morrer se encontram”, o qual nos comoveu com tamanha sensibilidade de escrita e com temas tão caros à nossa sociedade – o acompanhamento de doulas na hora do parto em hospitais e a realização de ritos fúnebres aos entes queridos – e estão ameaçados neste período pandemônio. Foram diversos áudios trocados e ofegantes para exteriorizar tamanha beleza.

Outro momento que fomos brilhantemente presenteados com uma leitura sensível e profunda foi com o texto “As mulheres vencerão: mulheres, ansiedades e vitórias na pandemia”. Essa etnografia atravessou-me de diferentes formas. Com ela, pude fazer uma auto-reflexão da minha própria saúde física e mental, do meu trabalho e das relações com as pessoas ao meu entorno. Eu via-me naquelas linhas reflexivas.

Para encerrar a minha exposição de textos – não necessariamente preferidos, mas que carregam uma história comigo – gostaria de falar de um dos poucos poemas que chegaram ao blog. “De tudo que já disse até agora” é um compilado de mensagens que a autora enviou por WhatsApp no período de pandemia. Recebi este poema durante uma reunião que discutíamos técnicas de cuidado de saúde mental, na qual este lindo e pequeno texto veio a calhar perfeitamente.

Esses textos citados e outros que estão no blog formam um compilado de experiências, resistências, conhecimento. São materiais que contam e que produzem o registro de diversas histórias, da nossa história. É um compilado que afirma uma história diferente daquela que se refere a uma gripezinha; histórias de pessoas que estão produzindo o continuar dos dias em meio aos continuares que foram encerrados e interrompidos. É a narrativa que vai muito além de uma pandemia. Apresenta histórias de vida e morte, de adoecimento e cura, de cansaço e lutas incessantes, de sentimentos, de afetos, de vitórias e de cuidado.

É no compartilhamento desses textos e dessas experiências que muitas vezes encontramos força, que nos dedicamos ao autocuidado que é inteiramente coletivo e ao cuidado dos nossos amigos. Essas histórias contadas nos ensinam a reinventar estratégias de enfrentamento ao covid-19 e ao cuidado da nossa saúde. Não apenas na leitura, mas também na oportunidade de escrita. Lendo Glória Anzaldúa e Audre Lord, que nos convidam a prática da escrita como forma de expressão do conhecimento, de resistência e do não silenciamento, vejo o blog como ferramenta para esse convite.

Essas autoras contam como a mulher negra encontra dificuldades na produção da escrita devido à sua própria história de vida e como essa mesma história deve ser colocada nas produções gerando o conhecimento e compartilhamento. Da mesma forma, entendo que a proposta do blog – se não desde o seu início, hoje sem dúvidas – tem sido o de agrupar fragmentos da nossa própria vida gerando, além de conhecimento e compartilhamento, ferramentas de cuidado, estratégias de sobrevivência, produção e visibilização da história.

Essa é uma forma de como poderíamos, hoje, colocar as nossas experiências e preservar a nossa própria escrita dentro do processo de construção, quase artesanal, de conhecimento e cuidado. Ainda não choveu em Brasília e o sol resolveu aparecer timidamente. Por poucos segundos, os raios de sol transpassaram minha janela fechada e aqueceram o meu corpo. Termino, assim, essa minha escrita.

 

 

 

 

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