CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

A prostituta, o vírus, a cidade

Artigo originalmente Publicado no Boletim IPPUR.

Realizado pelo Observatório da prostituição/lemetro/IFCS-UFRJ.

Soraya Silveira Simões, Laura Murray, Patrícia de Moura e Silva Toledo, Thaddeus Gregory Blanchette, Ana Paula Silva.

Acesso dia 04/12/2020 em <Prostitute picchiate, ricattate e derubate: caccia ad una banda di romeni (corriereadriatico.it)>

Há mais de três décadas, quando o HIV já tinha ocasionado uma série de mortes pelo mundo e a Aids foi então definida como uma “síndrome” (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), a epidemia foi classificada como “a pior e mais terrível doença do século”. O temor de infecção pelo HIV se alastrou por todos os continentes e logo foram identificados os chamados “grupos de risco”, ou seja, aqueles que comporiam “populações” mais expostas ao risco de contaminação. Por ser um vírus transmitido pelo sangue, pelo sêmen e por secreções vaginais, o debate rapidamente se organizou em torno de determinados sujeitos e suas práticas sexuais ‘marginais’.

Estar fora de uma certa norma (heteronorma, em especial) foi o critério escolhido para circunscrever em ‘grupos de risco’ determinados sujeitos. A doença então foi logo associada – por governos e imprensa – a esses sujeitos e chamada de “Doença dos 5 H”: homossexuais, haitianos, hemofílicos, heroinômanos e hookers (trabalhadores sexuais), gerando um movimento associativo intenso daqueles que se viram discriminados pela epidemia (1).

Classificadas como um dos tais “grupos de riscos”, as prostitutas foram as mais interessadas em entender as formas de contágio e em formular críticas pertinentes ao modelo de prevenção então vigente no primeiro ano da resposta governamental à epidemia. Estas críticas contemplavam não só a ocupação que tinham no mundo dos serviços – condições de trabalho capazes de fomentar práticas de prevenção e em total segurança contra vários tipos de abusos – mas, sobretudo, voltavam-se para um necessário reconhecimento de que a prostituição, estigmatizada, deveria ser interpretada como um trabalho e, portanto, fosse respeitada (2).

O Ministério da Saúde não demorou para adotar o conceito de vulnerabilidade, em detrimento daquele de grupo de risco, que deixava, a cada dia, de ser operativo para o planejamento de contenção da epidemia. Vulnerabilidade, afinal, permitiria ver melhor os contextos em que os sujeitos estavam inseridos e todas as formas de discriminação passaram a ser tratadas como parte de uma síndrome, espécie de “hipossuficiência atribuída” por todos os demais agentes com os quais uma prostituta interage em seu dia-a-dia de trabalho. Vulnerabilidade individual, coletiva, programática, estrutural, institucional. Eram muitas as novas chaves de leitura, as novas “visões de mundo”. Algo que parece se forjar em ocasiões extremas, como a atual, em que o desconhecido se manifesta como um trickster.

Os movimentos sociais deram sua determinante contribuição e o próprio vírus também forçou uma reorientação da política – cada vez mais a “doença gay”, como era anunciada nos jornais no início da epidemia, alcançava também prostitutas, mães e pais de família. A sexualidade da família brasileira foi exposta ao risco das considerações públicas uma vez que, na prática, sua prática não era necessariamente tão diferente daquelas hors normes.

Cidade, trabalho, gênero, sexualidade e estigma reunidos em um só pacote re-situaram o debate sobre a prevenção do HIV/Aids no Brasil, que se tornou exemplar em sua política de prevenção e combate ao HIV/Aids graças à mobilização da sociedade civil e, em particular, daqueles inseridos nos chamados grupos de risco (4).

Hoje, em 2020, a pandemia da COVID-19 lança uma nova luz sobre essa experiência coletiva angustiante, mas que propiciou a estruturação de um Programa Nacional de DST e Aids, em 1986, e formulação de políticas públicas de saúde com efetiva participação dos movimentos sociais, inclusive no fomento a pesquisas coordenadas pelas associações da Rede Brasileira de Prostitutas. Importante lembrar o Sistema Único de Saúde foi criado nesta época. Essa nova luz trazida pela epidemia de Coronavírus nos ajuda a rever a epidemia do HIV e a resposta política brasileira e a pensar no sentimento coletivo a respeito da importância de um sistema público de saúde e do fim das desigualdades sanitárias. Momentos críticos favorecem o reconhecimento do que pode e deve ser fundamental e universal. Estamos de novo imersos em uma experiência coletiva angustiante, em escala global, e os procedimentos de identificação de uma doença, de suas formas de contágio e de suas origens abrem um amplo campo para que sujeitos também sejam identificados e homologados como parte de uma cadeia de transmissão. Ou melhor, uma parte principal da cadeia de transmissão. No caso da COVID-19, alguns ensaios já foram feitos. Todos eles com aspectos racistas e xenófobos, como sói acontecer quando se busca a origem de um “mal”.

Todo esse preâmbulo tem uma razão de ser. Há um histórico de lutas contra estigmas no movimento brasileiro de prostitutas e boa parte dessa luta foi acolhida, amparada e tensionada no campo da saúde. O conceito mesmo de saúde se amplia, nessas horas, passando a contemplar o reconhecimento positivo como essência de saúde – emocional, física, social. O cuidado de si, historicizado extensamente por Foucault (5), volta ao debate como uma face de um cuidado do outro. E, nessas condições, pode-se pensar tanto no conforto (de uma posição social, de uma casa ou das ruas de um bairro) quanto na valorização social que se expressa num modo de tratamento experimentado nas mais diversas situações cotidianas.

O Coronavírus, com sua capacidade imbatível de propagação, delineou um imaginário social avassalador. O “grupo de risco”, os idosos, são nossos avôs e avós, pais, mães, tios. Lembra-se sempre da família. Um tipo de família que em nada remete àquelas afinidades que vão se constituindo em contextos onde há o encontro de muitos que foram banidos por suas famílias. Ou daqueles cujas famílias não devem saber onde se encontram. Em tudo isso, há uma opressão que sustenta uma certa organização também da cidade, marcada por mores que, embora muito contestados, continuam vigentes e operando variadas formas de opressão.

Zonas, hotéis, motéis, bares, boates, termas, postos de gasolina de beira de estrada, praias. A prostituição se apresenta onde o povo está, por onde o povo transita. Ou ela mesmo cria desvios para que o povo possa querer, vez por outra, mudar de caminho. O fato é que a pandemia da COVID-19 e as controvérsias em torno do lockdown diluíram as cidades, esvaziando suas ruas e as atividades que nelas têm lugar. E os que dependem da rua viva tiveram que recorrer aos seus vínculos locais, mais do que nunca, enquanto esperam ações do mesmo Estado que, nos últimos anos, particularmente nos governos Temer e Bolsonaro, tem sido objeto do desmonte das redes de proteção social, trabalhistas e do SUS. Tal como aconteceu na epidemia do HIV/Aids, a COVID-19 mostra as fragilidades e os preconceitos das estruturas estatais, sobretudo, agora, para o cuidado com idosos e trabalhadores informais.

Ações coletivas nas cidades do país

Em Belo Horizonte, na rua Guaicurus e seu entorno, onde estão concentrados dezenas de hotéis, a Associação de Prostitutas de Minas Gerais – APROSMIG discutiu com os proprietários uma medida para minorar a vulnerabilidade de muitas prostitutas que acabam passando dias nos quartos alugados. É ali que boa parte das mulheres que trabalham na Guaicurus estão cumprindo o isolamento social, contando com refeições que estão sendo oferecidas pelos donos dos hotéis e serviços de atendimento médico conveniados com a associação. Algumas mulheres solicitaram e receberam passagens para voltar para suas cidades de origem e lá permanecerem durante esse período e a associação tem conseguido algumas cestas básicas para quem não está nos hotéis. “As que ficaram no hotel em quarentena, sem aglomeração, estão tendo alimentação. E as demais, que assim quiseram, foram para uma casa em Sabará, com uma colega da Associação. A questão é que quem foi embora já tá pedindo ajuda, porque não tem recurso. As que moram aqui já estão indo para a Afonso Pena [Avenida Afonso Pena, onde prostitutas aguardam nas calçadas os clientes motorizados]. Agora, conseguimos fazer parceria com um agricultor que também vem deixar cestas básicas [Agência de Negócios e Inovação]. Além disso, a Jocum [Jovens com uma Missão] também está dando cesta básica. E a Pastoral [da Mulher Marginalizada] está se organizando para atuar”.

Em Belém, o GEMPAC, Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, realizou o cadastro de pouco mais de 100 mulheres que trabalham na região central da cidade – Campina e Ver-o-Peso –, para receberem cestas básicas imediatamente e, num momento seguinte, para cadastrá-las no Fundo Esperança, criado pelo Governo do Estado do Pará, em caráter de urgência, em parceria com SEBRAE e o Banpará, para financiar trabalhadores formais e informais, com taxa 0,2% ao mês. A mobilização pelas redes sociais também tem ajudado a distribuição de recursos às prostitutas do Pará através do GEMPAC e um grupo de voluntários está contribuindo para atender demandas que chegam à associação, normalmente vindas de prostitutas e outros habitantes da região da Campina. “Ainda bem que no Brasil ainda tem muita gente solidária, o que nos faz resistir e acreditar”, diz Lourdes Barreto. Um canal virtual foi aberto para facilitar a comunicação com prostitutas que necessitam de apoio e não sabem como acessar os aportes dos governos federal e estadual. Todos os moradores de rua da região estão recebendo apoio do GEMPAC e a Pastoral também está estruturando ações emergenciais, assim como em Belo Horizonte.

Em Campinas, a Associação Mulheres Guerreiras estava traçando o seu plano estratégico quando foi determinado o isolamento social. O bairro de Itatinga, construído para segregar a prostituição do centro da cidade em um terreno afastado, nos anos 1960, é hoje uma das maiores zonas de prostituição do país (6). Betânia Santos, uma das fundadoras da Associação, diz que boa parte das prostitutas não é contribuinte do INSS e não se declara pelo código 5198, designado aos ‘profissionais do sexo’ pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO-MTE). “A categoria não tem como comprovar o trabalho, por isso a gente está encontrando algumas dificuldades”, diz Betânia.

Em São Paulo, a ONG Mulheres da Luz – organização que trabalha junto às mulheres (muitas vezes da terceira idade) que fazem programa na região da Luz – está com sua sede fechada. O Parque Jardim da Luz também encontra-se fechado, agora por causa do coronavírus. As prostitutas que trabalham na região representam uma faixa extremamente precária do comércio sexual, sendo composta principalmente por mulheres acima de 50 anos de idade para as quais a prostituição é a única fonte de renda. Como a sede da ONG está fechada e as associadas estão com suas rendas reduzidas, a ong está tendo dificuldades para receber mantimentos e outras doações para distribuição a seus membros. Esse tipo de ação, contudo, está centralizada na sede de outros grupos, como a Cia. Pessoal do Faroeste, grupo de teatro com sede próxima ao Parque da Luz, que recebeu sabonetes e cestas básicas para distribuição aos habitantes das ruas da região.

Em Campina Grande, todos os bregas e cabarés estão fechados. As mulheres que têm telefone cadastrado no Centro Informativo de Prevenção Mobilização e Aconselhamento aos Profissionais do Sexo – CIPMAC, associação de prostitutas formada em 1989, no auge dos esforços para a contenção da epidemia do HIV/Aids no Brasil, com o apoio do Ministério da Saúde. As associadas estão recebendo cestas básicas e encaminhamento para receberem auxílio federal e estadual. A sede do CIPMAC está fechada, e todo o contato está sendo feito pelo telefone ou whatsapp, para qualquer emergência ou necessidade de material de higiene (luva, máscara, camisinha e álcool gel). “Nós criamos um canal de informações, através do whatsapp, onde a gente passa informações sobre a COVID-19, os locais de atendimento de saúde e o fluxograma da vacina da gripe para as mulheres acima de 60 anos. E estamos fazendo doações de alimentos para as associadas, com o recursos do Fundo Red Umbrela” [fundo que aporta recursos às associações de prostitutas em todo o mundo]. Sobre o cadastro para recebimento de ajuda do governo federal, há ainda muitas dúvidas: “A dúvida é como esse recurso será acessado, mas o Conselho Nacional de Saúde enviou ofício pedindo a inclusão dos profissionais do sexo no programa”. A associação também pretende difundir informações sobre o acesso ao auxílio que será oferecido pelo governo federal.

Em Natal, a maioria das casas fecharam e alguns donos de bordéis estão dando suporte para que as mulheres possam ficar ali em isolamento. A falta de clientes ajuda a manter a regra vigente. Apesar disso, o apoio se resume a uma ajuda para as mulheres (lugar para dormir, alimentação etc) e não se estende para as famílias que elas sustentam. Algumas continuam trabalhando com clientes antigos e fixos através de seus celulares e outro grupo, menor, que tem acesso à computadores, webcam e uma boa conexão de internet , tem trabalhado através de sites. A Associação de Profissionais do Sexo de Rio Grande do Norte – APRORN está reunindo cestas básicas mas o número de doações não tem sido suficiente. Uma grande parte das integrantes da Associação fazem parte de grupos de risco e tem, sobretudo, se mobilizado através das redes sociais em busca de auxílios coletivos.

No Rio de Janeiro, em fevereiro, a Vila Mimosa, que reúne centenas de mulheres diariamente, foi fechada. Naquele momento, a COVID-19 estava ainda muito distante e inexistente nas conversas do dia-a-dia. O motivo para o fechamento da zona foi a visita da CPI dos Incêndios, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, presidida por deputados do PSL (7) . Durante dias, semanas, muitas prostitutas tiveram que suspender suas atividades, já sentindo o temor da fragilidade econômica que, hoje, aflige bilhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Somente na sexta-feira, dia 12 de março, ao final da audiência pública da CPI dos Incêndios, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta permitindo a reabertura imediata da Vila Mimosa enquanto a adequação das instalações elétricas fosse feita e condicionado à avaliação dos técnicos competentes. Isso ocorreu na sexta-feira, dia 12 de março, e, por volta das 16h, o ônibus cor de rosa-choque que levara dezenas de mulheres à ALERJ retornava à Vila Mimosa repleto de prostitutas, gerentes, ‘donos’ e ‘donas-de-casa’ ávidos por voltarem a trabalhar. Nesse mesmo dia, boa parte da cidade já começava a parar, e a Vila foi fechada totalmente na sexta-feira seguinte, dia 19/03, por causa do coronavírus.

No Centro, área de maior concentração do comércio na cidade do Rio de Janeiro, todas as dezenas de termas, fast fodas, relax, boates e casas da região estão fechadas desde 23 de março. Não há também comércio de rua, em lugares como o entorno da Praça da República. No entanto, ainda há um pequeno movimento em torno da Central do Brasil, onde prostitutas – particularmente as mais velhas, que não dispõem de outros recursos – procuram clientes entre o já reduzido fluxo de trabalhadores que vão e vem pelos trens da Supervia.

Em Copacabana, a CasaNem, que hoje ocupa um prédio de sete andares na rua Dias da Rocha, continuou recebendo moradores trans e cisgêneros. Filiada à Frente Internacionalista dos Sem Teto – FIST, a CasaNem organizou uma série de medidas tomadas coletivamente para o funcionamento do prédio em tempos de coronavírus. Há um andar para os que necessitarem ficar em quarentena e os demais habitados por todos que estão em isolamento social no prédio. A cozinha coletiva funciona em sistema de rodízio e, segundo Indianare Siqueira, criadora da CasaNem, todos devem higienizar as mãos com álcool gel (distribuído por voluntários) para subir no prédio. A CasaNem atende 147 pessoas e 65 estão residindo no prédio, em Copacabana, em isolamento social. Uma série de colaborações online têm destinado recursos para os habitantes. Entre estes, a própria FIST que, através de uma lista de whatsapp, têm divulgado informações sobre a distribuição dos mantimentos para as casas de acolhimento LGBTQi+ e para suprir prostitutas que trabalham em salas em prédios comerciais, bares, hotéis, bregas, boates, cabarés, praças e ruas de todo o país.

A prostituição dirigida aos turistas, existente em Copacabana há décadas e que confere parte da reputação “animada” e “boêmia” ao bairro, desapareceu com o fechamento das praias e bares da orla. Ainda há um pequeno movimento noturno, nas ruas, mas dirigido a clientes locais e já conhecidos.

A Rede Brasileira de Prostitutas, que reúne estas e outras associações sediadas em cidades de todas as regiões do país, elaborou uma campanha levando em conta as ocupações precarizadas no país e uma leitura da distribuição, por gênero, dos que delas se ocupam. Manicures, depiladoras e outras trabalhadoras que se ocupam dos serviços de cuidados com o corpo têm conseguido obter ajuda diretamente de uma parcela de seus clientes. No caso das prostitutas, o mesmo ocorre com pouca frequência. Lourdes Barreto, do GEMPAC e da Rede Brasileira de Prostitutas, interpreta esse dado como uma mudança na própria prostituição. A migração das esquinas para o ambiente digital afetou as diversas formas de sociabilidade nas cidades e, com isso, o estabelecimento de laços mais ou menos duráveis marcados por relações de confiança. Segundo Lourdes, uma parte das mulheres recebem ajuda para pagamento de contas ou abastecimento doméstico de seus clientes, mas, hoje em dia, isso seria uma exceção nas relações estabelecidas na prostituição.

Secretarias de Assistência Social estão fazendo plantão para o cadastramento de pessoas em situação de rua, população LGBT, profissionais do sexo e refugiados. Na Paraíba e no Rio Grande do Norte, a APROS-PB, a APROS-RN, a APROCE (Associação de Prostitutas da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará), a APPS (Associação Pernambucana de Profissionais do Sexo) estão estimulando as mulheres a se cadastrarem como “trabalhadoras sexuais” para que, com isso, se produza um número desse universo de trabalhadoras também ele bastante invisível em termos estatísticos.

“Precisamos ter tempo”

O tempo. Pesquisadores, especialistas da área de saúde e governantes estão pedindo à população do planeta que fique em casa. Essa parada global é o remédio, por ora, enquanto o vírus e sua devastação estão sendo pesquisados. O tempo que se pede, a ser dado coletivamente, é o intervalo entre a última circulação livre pelas ruas, em meio à rotinas do cotidiano, e uma próxima ida à esquina, à praia, ao trabalho.

Sob esse tempo, que contabiliza os dias como extensão de uma contenção, fruto do trabalho coletivo (que inclui os reclusos e os governos), há outros tempos, que são contados pelo estômago, pela língua seca, pelo corpo, pela carência. Esse tempo é aquele que não pode ser interrompido e que exige que tudo pare para o surgimento de uma política capaz de adotar corpos e sujeitos. Essa política, há muito implementada por vários movimentos sociais e por eles reclamadas como políticas públicas, é marcada por solidariedades, obviamente, mas, importante ressaltar, é também marcada por muita criatividade, ousadia e competência política.

Se a cosmologia do sanitarismo surgida com a descoberta da microbiologia formou um novo nexo social pelo entendimento de que, entre um indivíduo e outro, não havia mais as descontinuidades biológicas de outrora, com a epidemia do HIV/Aids isso tornou-se uma clara realidade, infelizmente, apenas para alguns grupos: os estigmatizados. Seria salutar que fosse realidade sentida por todos. Pois, entre todos os seres, o que há são inúmeras continuidades e a ideia de uma ecosfera caminha no mesmo sentido. O vírus não nos difere por conceitos. Aliás, ele não nos distingue. E isso, não por princípios. Sem princípios ou distinções, o vírus nos obriga a tomar a sua não-discriminação como um exemplo e um princípio inquestionável. O contágio do coronavírus se faz sem que saibamos exatamente como, em que momento, onde. São muitas incógnitas.

E em meio a tantas especulações, anseios e controvérsias, uma espécie de topografia lendária é construída com as epidemias (8). Nela, emerge também a história social dos lugares onde determinadas práticas serão então, um dia, desnaturalizadas e observadas, após termos todos experimentado, coletivamente, um drama social em escala global.

Trata-se de uma narrativa global que atesta a existência de um vírus, para o qual foi produzida uma imagem que nos ensina a visualizá-lo, embora nos seja invisível. Na construção simbólica do vírus, ele tem cor e está no meio de nós, na banalidade de nosso dia-a-dia. O novo nexo social que vem se desenvolvendo desde as pesquisas de Pasteur, em saltos no tempo, nos ensina que o “mundo dos micróbios” liga e afeta os nossos corpos, permitindo uma nova compreensão da vida social e dos novos hábitos e políticas a serem incorporados. Estávamos seguindo no caminho das políticas de reconhecimento, de autodeterminação e ações afirmativas. O caminhar da autoprodução da sociedade civil brasileira foi brutalmente interrompido. Talvez o vírus nos ajude a limpar nossas lentes para melhor refletir sobre o que quer dizer “nossos corpos”. Com a urgência do isolamento social, é urgente representá-los de outro modo, para melhor nos entendermos como seres vivos em uma ecosfera – que, em certas medidas e em certos momentos, nos força a simplesmente acreditar, a suspender todas as verdades e instaurar todas as hipóteses. A permanente dúvida face ao invisível e a incorporação ampliada de um certo espírito científico, capaz de mudar uma cultura experimental e de “derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana”, nas palavras de Gaston Bachelard (9). Isso – acreditar (e, no caso, na existência e na propagação do coronavírus) – é o primeiro passo de todo e qualquer experimento, científico ou político. Portanto, cabe ao público o aporte de contribuições e a produção de respostas a um questionamento fundamental: o que nos é comum? Face ao Coronavírus, a melhor resposta não deve reforçar fronteiras.

—————————————————————————————————————————

(1) “Histórias da aids no Brasil”, Lindinalva Laurindo Teodorescu e Paulo Roberto Teixeira, vol.II “A sociedade civil se organiza”, 2003, MS; GALVÃO, Jane, “Aids no Brasil: agenda de construção de uma epidemia”, 2000.

(2) Simões, Identidade e Política, 2010.

(3) Idem; e v. tb. Manual de prevenção HIV/Aids do MS, não lembro onde está

(4) op.cit., 2000, 2003 e 2010.

(5) História da Sexualidade e A Hermenêutica do Sujeito.

(6) v. RAMOS, 2015.

(7) Entre eles um que tornou-se conhecido durante as últimas campanhas eleitorais para o executivo e o legislativo estadual ao quebrar a placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada meses antes, durante um comício, ao lado do então candidato à governador Wilson Witzel

(8) MELLO, CUNHA, 2006.

(9) A leitura do livro A formação do espírito científico, de Gaston Bachelard, publicada pela primeira vez em 1938, nos parece bastante adequada nesse momento, em que uma experiência coletiva nos reúne, em escala global, em torno de um problema comum. No livro, Bachelard trabalha a noção de “obstáculo epistemológico”, abordando os conhecimentos empíricos experimentais realizados por todos nós, cotidianamente, ressaltando que “o pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido” (2013: 17). Esse argumento vem ao encontro da nossa provocação aqui.

Soraya – antropóloga, professora IPPUR-UFRJ

Laura – antropóloga

Patrícia – doutoranda IPPUR-UFRJ

Thaddeus – antropólogo, professor UFRJ

Ana paula – antropóloga, professora UFF

Publicado originalmente no dia 23/04/2020.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *