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Manifestação do Nupens/USP sobre a Nota Técnica nº 42/2020 do Ministério da Agricultura com descabidos ataques ao Guia Alimentar para a População Brasileira
Nesta quarta-feira, 16/9/2020, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) tomou conhecimento de um ofício encaminhado pela Senhora Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, ao Senhor Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, solicitando a urgente revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicação editada pelo Ministério da Saúde do Brasil em 5 de novembro de 2014.
Conforme assinalado no preâmbulo da publicação pela Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, “…o Guia Alimentar para a População Brasileira se constitui como instrumento para apoiar e incentivar práticas alimentares saudáveis no âmbito individual e coletivo, bem como para subsidiar políticas, programas e ações que visem a incentivar, apoiar, proteger e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional da população”.
O ofício da Senhora Ministra do Mapa é acompanhado de uma Nota Técnica (nº 42/2020) que justificaria a necessidade da urgente revisão da publicação.
As justificativas apresentadas pela Nota Técnica se centram em críticas à classificação de alimentos utilizada pelo Guia Alimentar e à recomendação quanto a evitar o consumo de alimentos ultraprocessados. Entretanto, tais críticas se resumem a afirmações não amparadas por qualquer evidência científica.
Por exemplo, sobre a classificação NOVA, diz-se que:
“Entretanto a classificação NOVA utilizada é confusa, incoerente e prejudica a implementação de diretrizes adequadas para promover a alimentação adequada e saudável para a população brasileira. A classificação definida pelo critério de tipo de processamento não apresenta nenhuma contribuição para um guia alimentar público, representando o posicionamento do Governo Federal. A classificação é arbitrária e confunde nível de processamento com a quantidade e tipos de ingredientes utilizados na formulação dos alimentos industrializados (REGO 2014)1”. Note-se que a referência oferecida para amparar a afirmação em nenhum momento se refere à classificação NOVA.
Para se contrapor à recomendação do Guia Alimentar de evitar o consumo de alimentos ultraprocessados, a Nota Técnica diz que “… existem alimentos processados que contribuem com uma ampla variedade de nutrientes em todos os níveis de processamento (EICHER-MILLER et al., 2012. p. 49-79)2”. Além de ignorar o fato de que o Guia Alimentar enfatiza os vários benefícios do processamento de alimentos — como ampliar sua duração e diversificar a dieta — recomendando que se evite apenas o consumo de alimentos ultraprocessados, o estudo de EICHER-MILLER et al., 2012, que avaliou o perfil nutricional de alimentos consumidos nos Estados Unidos, simplesmente não considerou a categoria de alimentos ultraprocessados em sua avaliação.
Além de amparar todas as suas afirmações sobre a suposta incoerência da classificação NOVA e sobre a suposta inocuidade dos alimentos ultraprocessados em duas referências que não se referem à classificação e não avaliam alimentos ultraprocessados, a Nota Técnica omite a vasta literatura científica nacional e internacional acumulada desde 2009, quando a classificação e o conceito de alimentos ultraprocessados foram propostos pelo Nupens/USP.
Omite os mais de 400 estudos científicos indexados na base PubMed que utilizaram a classificação NOVA e o conceito de alimentos ultraprocessados.
Omite as cinco revisões sistemáticas, além de uma revisão narrativa, que demonstraram a associação inequívoca do consumo desses alimentos com o risco de doenças crônicas de grande importância epidemiológica no Brasil e na maior parte dos países, como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e acidentes vasculares cerebrais, incluindo a mais recente publicada por Pagliai et al3 na revista British Journal of Nutrition.
Omite também o primeiro ensaio clínico controlado sobre dietas ultraprocessadas, realizado por Hall et al4 no maior centro de pesquisas em saúde do mundo (National Institutes of Health), que confirmou a relação causal do consumo dessas dietas com aumentos acentuados na ingestão de calorias e no ganho de gordura corporal.
Novamente sem oferecer nenhuma evidência científica, para nossa surpresa, a Nota Técnica do Mapa chega a afirmar que “… atualmente o Guia brasileiro é considerado um dos piores [do planeta]”.
Assim não pensam organismos técnicos das Nações Unidas, como a FAO, a OMS e o UNICEF, que consideram o Guia brasileiro um exemplo a ser seguido. Assim não pensam os Ministérios da Saúde do Canadá, da França, do Uruguai, do Peru e do Equador, que têm seus guias alimentares e suas políticas de alimentação e nutrição inspirados no Brasil. Finalmente, assim não pensam os autores de um rigoroso estudo publicado em 2019 pela revista Frontiers in Sustainable Food Systems, que elegeu o guia alimentar brasileiro como o que melhor atendia a critérios previamente estipulados quanto à promoção da saúde humana, do meio ambiente, da economia e da vida política e sociocultural (Ahmed etl 2019)5.
Diante da fragilidade e inconsistência dos argumentos apresentados na Nota Técnica do Mapa e da absurda e desrespeitosa avaliação do Guia Alimentar brasileiro, confiamos que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira saberão responder à altura o que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo.